terça-feira, 11 de outubro de 2011

MAPA DAS ESPECIARIAS

Penso que é interessante publicar esse mapa devido a sua função didática. Serve para visualizarmos as rotas das especiarias, assim como seus locais de origem, para aliado aos textos contribuir para a compreensão da importância da expansão marítima européia.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A MISSÃO DOS JESUÍTAS: O PAPEL DAS MISSÕES JESUÍTICAS NO CONTATO COM O GUARANI
Luciano Braga Ramos
INTRUÇÃO
            Para compreendermos como ocorreu o processo de “conscientização” dos índios guaranis, em relação à proposta jesuítica, é preciso conhecer um pouco mais sobre aqueles que foram responsáveis pelo processo de catequização desses índios, num curto espaço de tempo que levou os índios guarani a condição de “reduzidos”. E que, no entanto pesquisadores como Santos, (1998:23), discordam da condição de reduzidos a qual foram sujeitos os guaranis. Pensamos que existiu sim uma redução, no sentido de que a proposta das reduções, era uma proposta vinda de fora do cotidiano da cultura guarani. Dessa forma a Companhia de Jesus foi num primeiro momento o invasor do meio ao qual o guarani estava inserido, desde antes da chegada dos primeiros conquistadores europeus.
Podemos sugerir que a chegada da Companhia de Jesus, não foi grosso modo o encontro de dois mundos, devido já a presença dos europeus na América. Ao menos pode ter sido o reencontro de dois mundos dentro da esfera cultural, devido à relativa rapidez em que a cultura dos jesuítas, vai aculturando se é que se pode dizer, a cultura e o modo de vida do guarani. Esse encontro pode ser analisá-lo dentro de um processo que relativize as formas de poder também fora da esfera do poder de Estado. Ocorrendo uma relação de poderes, no que Foucault (1979:06), conceituou como micro-física do poder, para sua análise sobre os poderes fragmentados, poderes estes que são do cotidiano dos indivíduos dentro das instituições a que estes pertencem ou estão submetidos.
Levantamos esta questão sobre à micro-física do poder, por que esses micro poderes, segundo Foucault (1979:08), não pressupõe o uso de força para se exercem na sociedade. Esses poderes em sua maioria não são sinônimos de força, mas sim de persuasão. E com base nas bibliografias analisadas, o processo social que se estabeleceu entre os padres da Companhia de Jesus e as comunidades indígenas guarani, com algumas exceções não foram encontros hostis. Na maioria dos casos foram encontros de reconhecimento com trocas de presentes, como forma de tentar demonstrar “amizade” e “respeito” da parte dos padres jesuítas para com os guarani. Estas estratégias faziam parte dos planos da Companhia de Jesus representada pelos seus padres no contato com os nativos, na intenção de se aproximar da tribo, para que desta forma pudesse compreender e aprender a conhecer a cultura do guarani, para assim dominá-la, ou aniquilá-la se fosse o caso, ou na melhor das hipóteses reduzirem-na.
Na tentativa de compreendermos aspectos desse processo que foi as missões jesuíticas na América Espanhola, faz-se necessário conhecermos um pouco da história de fundação da Companhia de Jesus, e um pouco de suas posições mentais e intelectuais que fizeram com que a Coroa Espanhola lhes conferisse créditos para realizarem “tamanha obra” no novo mundo. Busquemos entender o contexto do surgimento da Companhia de Jesus na Europa, para assim entender melhor seus métodos e táticas adotadas na época das Missões no continente americano frente ao encontro com o guarani.
Chamamos atenção para as possibilidades de análise que as obras sobre o assunto nos apontam, em relação à maneira de compreender o mundo por parte dos jesuítas aqui chegados, e sua proposta de “Missão”. Embora sabemos que tem um fundo de dominação cultural que conseguiu reduzir indivíduos a propósitos específicos para a “missão dos jesuítas”. E talvez esses propósitos ficaram mais evidentes quando do fim da Missões  pelas Coroas espanhola e Portuguesa, que acabou por deixarem os índios guarani numa situação de desterro devido aos anos de imposta adaptação identitária a que foram submetidos dentro da reduções. E isso se reflete até os dias de hoje, visto que o guarani dos dias atuais, busca sua identidade e seus mitos de fundação na origem dos povos das Missões.
Assim a análise deste encontro, nos possibilita descobrirmos os ganhos e perdas de ambos os lados nesse processo que se desenvolveu nas missões, como um intrincado jogo de múltiplas relações de micro-poderes, que ora legitimavam ora desestabilizavam certas conjunturas em proveito de uma das partes envolvidas nas esferas sociais da colonização. Tanto Estado, como índios e jesuítas foram sujeitos e objetos daquele contexto histórico de micro-poderes e micro-resistências.
A FORMAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS
            Idealizada como um movimento religioso para fazer frente à Reforma Protestante, numa época em que o catolicismo precisava combater ou dar uma resposta a altura ao movimento protestante que se propagava pela Europa. Por tanto a companhia de Jesus fundada em 1534, serviu num primeiro momento de instrumento do Estado para combater os desafetos católicos ou foi usada desta forma. “Em 1540 o Papa aprovou a bula Regimini militantis Eclisiae, autorizando os trabalhos apostólicos.” (OLIVEIRA, 2004:40). Portanto podemos dizer que a companhia de Jesus serviu aos interesses para combater os movimentos com caráter de heresia aos olhos também da Igreja, como foi o Protestantismo entre tantos que houveram na Europa. Mas agora no “Novo Mundo”, a Companhia de Jesus tinha um papel mais complexo, levando a catequese para aqueles que não eram hereges, mas apenas desconheciam a fé cristã segundo a visão dos europeus.
O que levou a escolha dos jesuítas foi a maneira pela qual praticavam com seriedade e disciplina os preceitos de uma vida cristã aos gostos da Igreja e aos interesses do Estado espanhol. Praticavam a pobreza, castidade e primavam pela disciplina ao castigo físico. E talvez esse leque de adjetivos e habilidades reconhecidas e desenvolvidas ainda na Europa no trato com os “seus” facilitou para que estes fossem vistos pela Coroa Espanhola como os mais aptos a levarem adiante o processo de expansão. Este processo que agora ao Ives de usar a espada, mais do que nunca, usava a cruz. “A meta jesuítica era “ordenar a vida do cristão”, para que este pudesse viver em paz com o seu espírito.” (OLIVEIRA, 2004: 41).
O ENCONTRO E FUSÃO DE DUAS CULTURAS
Considerando que  podemos entender a cultura como um processo dinâmico, que se difunde e se fundi no encontro das culturas, podemos imaginar como foi intricado esse jogo de relações entre jesuítas e guarani, pelo simples fato do jesuíta perceber o mundo a partir de sua cultura. “O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como conseqüência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural.” (LARAIA, 2005: 72)
Ocorreu um processo de fusão no encontro dessas culturas, pois os jesuítas precisavam fazer uma releitura do mundo cultural e religioso do guarani,Oliveira (2004). Ainda mais que os índios costumam de maneira geral ter uma explicação mítica religiosa para todos os fenômenos dentro do contexto de sua sociedade. Assim teve o jesuíta que procurar adaptar a liturgia, os dogmas, os sacramentos e a vida cristã ao cotidiano do índio guarani, fazendo com que os índios identificassem nos ritos cristãos elementos de sua identidade cultural. “A vida reducional adaptou-se à especificidade a originalidade guarani. Neste encontro surgem formas de vida religiosa e econômica que dificilmente se compreenderiam fora dessa etnologia.” (OLIVEIRA, 2004:46).
Mas não foi só a religião instrumento desse processo reducionista. Outro elemento importantíssimo para o domínio jesuítico foi pela maneira como o jesuíta logo chegando a América foi tratando de aprender o idioma de seus futuros braços para por em prática o projeto missioneiro. Claro que havia o interesse tanto por parte da Coroa como da Companhia de Jesus que os nativos logo aprendessem o espanhol. Porém para os jesuítas num primeiro momento era importante mais do que de pressa aprender a língua guarani. Já que desta forma deixariam os nativos mais vulneráveis dominando a linguagem. Por outro lado: “Nesse sentido, a aprendizagem da língua contribui para estabelecer relações estreitas com os guaranis que não se sentiam marginalizados por não falar a língua do espanhol.” (OLIVEIRA, 2004:51).
Além do mais aprendendo o idioma guarani penetravam fundo junto com sua didática catequista mesclando o catolicismo a toda materialidade e mentalidade no cotidiano do guarani e na sua maneira de ver o mundo. No processo de redução, há uma manipulação destas práticas por um sincretismo disfarçado, para que o guarani aos poucos fosse cooptado pelas práticas religiosa do cotidiano dos jesuítas. Como nos mostra Santos, (1998:121), O guarani nas mãos dos jesuítas servia aos interesses da coroa espanhola defendendo o território espanhol de possíveis ataques portugueses, e também contra outros índios que se recusavam a serem reduzidos, e até mesmo dos súditos considerados rebelados.
O guarani missioneiro torna-se súdito da Coroa Espanhola num primeiro momento sob a vigilância da Companhia de Jesus, até que esta tivesse seu projeto missioneiro visto como um Estado dentro de outro Estado, e nesse caso o espanhol. E consequentemente estava literalmente no caminho de fronteira das conturbadas coroas ibéricas. “O jesuíta filtra, via missão, os valores da sociedade européia, onde o índio, via de regra, devia ser o objeto da europeização. Almejava-se que ele fosse o fiel vassalo do rei (...).” (SANTOS, 1998:124).
E de fato o poder do rei andou muito tempo ao lado do poder clerical dos jesuítas. Seja pacificando ou catequizando os guaranis, seja com estes combatendo os avanços portugueses. Esses avanços da Coroa portuguesa em muito se davam na figura de seus representantes em termos de expansão no sentido de investidas território adentro, estamos falando dos bandeirantes a serviço da Coroa portuguesa. Estes Bandeirantes exploravam matas, serras e sertões, em busca de riquezas, sobre tudo atrás de braços para o trabalho compulsório. Tal trabalho somente capaz de ser executado pelo apresamento de índios. E esse era um dos papéis dos bandeirantes, buscarem índios “selvagens” dentro das matas.
No entanto o estabelecimento das reduções jesuíticas por parte da Companhia de Jesus, com o consentimento espanhol, era uma fonte cobiçada e aparentemente fácil de obter força de trabalho escravo. Para os bandeirantes e a Coroa portuguesa era unir o útil ao agradável. Por um lado se conseguia a captura dos índios das reduções, além de serem considerados índios “dóceis” e afeiçoados ao trabalho, também viviam num regime de súditos e na fé cristã. “(...), os índios das reduções atraiam a cobiça e a ganância dos que vinham em busca de escravos.” (URBIM, 1990:07). Muito cedo com as investidas bandeirantes em territórios missioneiros, por volta do ano de 1641, já se tinha conseguido o consentimento da Coroa espanhola para armar os índios para a expulsão dos bandeirantes.
Tal fato nos leva a acreditar que as características de autonomia e relativa independência das missões em relação à metrópole, foram sentidas desde muito cedo pelos jesuítas , assim como pelos próprios guaranis, que não tinham o contato com o “cacique” além mar. Dessa maneira os guaranis que haviam, num primeiro contato com os jesuítas sido cooptados pela cruz, agora estavam sendo juridicamente incorporados as armas dos brancos. “Assim os guaranis das reduções deveriam respeito ao rei (...), construindo fortificações e defendendo o território.” (URBIM, 1990:10).

OS SETE POVOS NO CAMINHO DOS INTERESSES DO SÉCULO XVIII
            Uma vez concretizado o “sonho das missões”, primeiramente por vontade dos jesuítas a serviço da Coroa espanhola. E num segundo momento pela aceitação do guarani a vida das reduções, que devido a esse processo acabou pela imposição “disfarçada”, criando para si uma explicação mítica e de identificação para a compreensão do mundo a sua volta. Pelas táticas didáticas pode-se dizer, aplicadas pelos jesuítas num processo conjuntural que foi a redução, fazia parecer que o projeto jesuítico missioneiro era o mais perfeito processo social, econômico e político de administração no novo mundo. E será que não foi? Não poderia ter sido?
Bem de qualquer forma esse crescimento e destaque que começou a se avolumar do poder da Companhia de Jesus, entre os poderes das duas coroas parece não ter agradado nem a Espanha e nem a Portugal. Podemos considerar que os interesses de ambos os lados, não levaram em conta que o fim das Missões, não significava apenas o fim dos trabalhos de catequese da Companhia de Jesus. Afinal de contas ela nunca representou somente os interesses religiosos na América. A expulsão dos jesuítas da América acabou por ser um processo de desestruturação conjuntural, implicando no abalo das dimensões sociais envolvidas naquele processo de ocupação daquele território e de seus habitantes pela Companhia de Jesus.

“(...) as Coroas redefinem o papel das missões, através do Tratado de Madri e acordos suplementares. Num primeiro momento os monarcas almejam o equilíbrio de forças, onde as Missões tem uma perda substancial do seu espaço de atuação e barganha.” (SANTOS, 1998:111).

Todo trabalho jesuítico e visto com desconfiança pelas Coroas sobre tudo sua ex-aliada que tem negociações importantes com sua vizinha lusa no Velho Mundo. Desta forma os missioneiros estão na pauta do dia, servindo no discurso anti-jesuítico do século XVIII. Talvez fosse pelo fato que para nós não é novidade a imagem criada das missões, sobretudo as dos sete povos que é o nosso objeto de investigação, ter criado um Estado dentro de outros Estados. Outros “Estados” assim pensamos, pelo fato dos Sete Povos das Missões estarem numa região considerada historicamente de fronteira “viva”.

“Por outro lado, as autoridades espanholas estavam mais preocupadas em deter o expansionismo luso-brasileiro no Prata, ou no Rio Paraguai do que com os povoados, estâncias e ervais da margem oriental do Rio Uruguai.” (SANTOS, 1998:117).

A função dos jesuítas foi ordenar os índios a serviço da Coroa espanhola, sendo fiel a Coroa e a Deus, tendo o índio como objeto da europeização. Mas, no entanto essa convivência nas missões criou um “mundo à parte”. O guarani dentro daquele processo aprende com os jesuítas o sentido de propriedade, sendo assim deixam de serem objetos dessa conquista. Pois se tornaram súditos do rei. A missão serviu para o fim de politizar o guarani dentro dos moldes políticos europeus. A missão enquanto Estado dentro de outro Estado, tendo o guarani como seu agente cria nesse o sentido de ser dono de algo concreto e visual como era o “mundo” das missões.

“Entretanto, à medida que os guarani-missioneiros lutam, para defender seus interesses (não deixando que os portugueses e os índios infiéis roubem-lhes o gado bem como não se expandem por suas terras) evidencia-se que eles deixam de ser objetos, para se tornarem sujeitos (...).” (SANTOS, 1998:124)
           
Analisando por essa ótica do guarani como sujeito do seu processo histórico missioneiro podemos entender que houve na realidade o duplo golpe de desarticulação do guarani. Já que este foi integrado na cultura dos jesuítas. Para depois ser reestruturado novamente com a sua expulsão pelas Coroas Ibéricas da região dos Sete Povos.
             Em meados do século XVIII estamos diante da reestruturação dos guarani. Se não de todos os guarani devido à dizimação causada pelas guerras guaraníticas, pelo menos de uma parcela que migrou forçosamente para as terras pertencentes a Coroa Portuguesa,
 Conforme (SANTOS, 1998:127), os guarani transladados para a Aldeia dos Anjos seriam de interesse para a região pertencente a Portugal e reinserido naquele contexto de mundo semelhante político-social e espiritual ao mundo espanhol, o qual o guarani já estava aculturado. No entanto era outra realidade devido às peculiaridades portuguesas e sua língua.

“Se o que notabilizou a experiência missioneira foi o processo de transculturação, o mesmo não se pode afirmar com relação à Aldeia dos Anjos, visto que as famílias guaranis teriam “apelidos portugueses”, bem como seriam obrigados a falar “nossa língua” e acima de tudo, as autoridades deveriam ter o cuidado de que: “se esqueçam da língua e de muitos de seus ritos e superstições.” (Figueiredo, 2/1/1771, AHRS, 1990:11, apud, SANTOS, 1998:129).
Entre 1762-63 ocorre o processo de assentamento dos guaranis missioneiros nas margens do rio Gravataí, nos, conforme Quevedo (1998), estes guarani foram de grande utilidade para o governo português serviram como agricultores, domadores, pedreiros, carpinteiros, amas de leite. Serviram tanto aos moradores como aos fazendeiros da Aldeia dos Anjos (SANTOS, 1998:129). Daí advém os problemas do índio à margem da sociedade.
O índio nas missões era parte do sistema daquele dito “Estado”. A gora dentro do território pertencente a Coroa Portuguesa, que possuía um sistema escravo de produção o guarani fica a margem deste estado de coisas. O guarani na Aldeia dos Anjos é o jornaleiro, não possui mais o grau de importância dentro do sistema de produção que possuía nas missões. É um súdito de segunda ordem, que perdeu seu espaço, aquele que outrora havia conquistado certa “autonomia” dentro das missões. Aquele que por muito tempo foi o lugar que continha os códigos do mundo do guarani do tempo das reduções.

“(...) da experiência missioneira à realidade rio-grandense, com a diferença de que, no projeto luso, o índio assemelhava-se mais a um objeto, devendo trabalhar e ser submisso, ao passo que, no projeto missioneiro ele aproxima mais ao sujeito de seu processo.” (SANTOS, 1998:131).

Há uma perca de identidade e de valores para o índio guarani que teve a partir de então graves consequências até os dias de hoje. A consequência de um guarani “reduzido” a esmolas do processo político brasileiro. Para (SANTOS: 1998) a retirada dos guarani das missões é que criou esse processo de miserabilidade que o estado jogou, não só o guarani, como todos os índios  a margem da sociedade. Mesmo para aquele guaranis que permaneceram nas periferias da região das missões tiveram suas terras usurpadas pelos colonizadores de ambas coroas.
A experiência das missões foi desarticulada devido às vontades dos estados absolutos, em suas atitudes despóticas. O guarani desarticulado do seu mundo “selvagem” não representava maior ameaça à negociação das fronteiras pelas coroas ibéricas. Por outro lado havia o poder representado pela Companhia de Jesus rica proprietária das missões dos Sete Povos, para não falar dos outros. Estes estavam situados numa importante região de trafego com importantes rios que escoavam as riquezas principalmente de regiões como Potosi. E também local de tráfico entra Portugal e espanhóis situados nessas localidades. E talvez por isso o crescimento exacerbado da Companhia de Jesus nas missões (SANTOS, 1998:145).
Levando em consideração que a companhia de Jesus prestava obediência ao Papa, e este se encontrava em Roma, podemos supor mais uma rede de poderes que não estava ligada aos interesses ibéricos. “Se estes padres são os soldados do Papa, isso significa que, além de serem o braço direito apelariam para o poder papal.” (SANTOS, 1998:146).
Assim não se tinha o interesse de manter As Missões competindo com as Coroas Ibéricas neste território conturbado, ainda mais que do ponto de vista dos interesses econômicos mercantilistas de ambos os lados. Na verdade o colonizador permitiu o trabalho missioneiro enquanto lhe serviu, enquanto serviu a seus propósitos de conquista pela cruz. Bastou que o projeto missioneiro criasse vontade própria, escapando do controle metropolitano caiu em descrédito sendo vitima dos interesses de Estado das Coroas Ibéricas.
 Em suma quem foi o grande prejudicado? Aquele que “lambe as feridas” até hoje, devido ao descaso das autoridades com seus problemas, o guarani. O guarani ainda vive o processo de aculturação e desestruturação de sua cultura. Somente a muito custo tem tentado manter seus costumes e cultura, dentro de um Estado propagandista em que muito de suas  teorias, na prática não se confirmam. E assim o guarani vai resistindo.







REFERÊNCIA
FOUCALT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico – 18ª ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 2005.
OLIVEIRA, Maria de Oliveira de. Identidade e interculturalidade História e Arte Guarani. Santa Maria: UFSM, 2004.
SANTOS, Júlio Ricardo Quevedo. Rio Grande do Sul. Aspectos das Missões (em tempo de Despotismo Esclarecido). Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 3ª ed. 1998.
URBIM, Carlos. Uma História de 300 anos Missões. Porto Alegre: Impresso pela RIOCELL, 1990.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

VESTÍGIOS DA ESCRAVIDÃO NA ALDEIA DOS ANJOS 1846-1856

VESTÍGIOS DA ESCRAVIDÃO NA ALDEIA DOS ANJOS 1846-1856

Luciano Braga Ramos

Resumo

A pretensão desta pesquisa é a proposta de trabalharmos através das fontes documentais os vestígios da escravidão em localidades ainda por serem trabalhadas ou que foram objetos secundários de pesquisa. A Freguesia de Nossa senhora dos Anjos, então extensão da capital nesse período, o que no máximo lhe conferiu um olhar a partir do centro, mas não acreditamos que isso tenha sido feito. Então buscamos documentos como as Cartas de Liberdade, tentando resgatar parte do que viria ser o cotidiano de senhores e escravos nesta freguesia, e principalmente buscar, se não respostas, mas lançarmos hipóteses sobre as possibilidades e barganhas do processo de microresistência e microliberdades travadas nessas complexas relações de cativos e senhores, sobre os interesses de ambos os lados que tornavam essas relações possíveis, relacionado ao contexto da época e suas particularidades locais e regionais. Mas sobre tudo mostrar que o escravo também foi sujeito ativo desse processo.

Palavras-chave: cotidiano – microrresistência – microliberdade – escravidão – liberdade.

Introdução

A região do município de Gravataí, praticamente até meados do século XX, foi uma cidade com sua economia e sociedade voltada para o trabalho no campo seja em pequenas ou médias propriedades. É só a partir de 1960, que começa o seu desenvolvimento industrial. Dentro desse contexto a região preservou muitos traços de seu passado e sua cultura de localidade e de população voltadas para a agricultura e pecuária.

A preservação desse panorama rural e suas peculiaridades, seus elementos expressivos, com a existência de famílias ditas tradicionais que ainda vivem em locais que pertenceram a seus avôs e bisavôs, assim como presença de territórios quilombolas na zona rural do município. Isso tudo nos coloca diante dos vestígios do passado para desta forma elaborarmos e estabelecermos relações de convivências cotidianas entre esses sujeitos de hoje, e dessa forma lançar um olhar ao passado desse local e sobre os antepassados destes sujeitos do presente buscando investigar os indícios e pistas que hoje nos restam para uma tentativa de levantarmos hipóteses e mesmo provisórias respostas a partir dos olhares lançados sobre esses indícios do passado.

Nosso tema tem como enfoque a escravidão em Gravataí, então Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos em meados do século XIX. Queremos com isso saber um pouco das relações cotidianas e de micropoderes entre senhores e escravos e compreender os elementos de funcionamento dessa sociedade escravista e patriarcal, e como se processavam tais relações a ponto de produzirem uma espécie de ambivalência no regime escravista.

Basicamente utilizamos como fontes documentais as Catas de Liberdade da Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos, do Livro1 de Notas de 1831 a 1880 que se encontra no APERGS, onde no referido livro encontram-se também Papéis de Doação que foi possível utilizarmos. Após um breve resumo histórico das condições contextuais do período analisado para a Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos, no segundo capítulo de nosso artigo apresentamos as cartas como objeto de estudo, e como prova das relações intrincadas entre senhores e seus cativos. As Cartas demonstram que tais relações não eram estáticas. Abordamos sobre tudo o interesse dos senhores em preservar sua imagem de senhores “benevolentes”. Assim como os cativos que a nosso ver criavam mecanismos para ganhar sua liberdade mesmo que condicionada justo pela importância do status de liberto dentro daquela sociedade.

Demonstramos pelos documentos pesquisados, as mudanças nas relações entre senhores e escravos conforme se aproximava o fim do tráfico internacional e sua consumação dentro do nosso período de estudo de 1846 a 1856. Esses fatos facilitam o afrouxamento das relações do sistema escravista. Assim como a situação econômica dos senhores fora dos grandes centros de agricultura de exportação, a liberdade do cativo poderia ser uma saída viável para o senhor aliviar seus gastos com a manutenção de escravos idosos. Mas, sobretudo a importância do aparecimento de um sujeito comprovado também no trabalho de Décio Freitas (1980), que é o escravo de ganho, o jornaleiro que consegue comprar sua liberdade com o tempo, devido a mobilidade conquistada junto a seu senhor. Esses fatores como outros elencados no primeiro capítulo colaboraram para a ascensão e formação da família escrava, pelas possibilidades que se abrem aos cativos de conseguirem comprar esposas, filhos, enteados, como veremos no capítulo seguinte.

O terceiro capítulo trata de questões como, o casamento, batismo, e apadrinhamento. Para nós num primeiro momento, esses ingredientes eram o tempero dessa proximidade de relações entra senhores e escravos. Cabe aqui ressaltarmos que entendemos as relações dentro dessa sociedade como sendo relações complexas, cada qual com suas particularidades, mesmo dentro de um conjunto de praticas habituais, corrente nesta sociedade, assim como no sistema escravista brasileiro como um todo. São relações dinâmicas e dialéticas no sentido de que estas relações são sociais e os indivíduos se recondicionam dentro da sociedade. Ou seja, o senhor de ontem muitas vezes passa a ser o patrão de hoje, ou mesmo o padrinho criando tais laços pelo batismo. Mesmo o casamento e a formação da família escrava são uma metamorfose de forros e escravos de filhos e enteados comprados de seus senhores. E dentro dessa junção, os mulatos, filhos das relações e violências extraconjugais dessa sociedade que de tradicional pelo que nos parece até dado momento tinha tais acontecimentos que mostram a verdadeira imagem da sociedade aristocrática branca e intocável, que, aliás, nem era tão branca assim.

1      Gravataí pequeno histórico

Gravataí, município situado na região metropolitana, desde seu início esteve agregado como Freguesia da região de Viamão do século XVIII até o início do século XIX, quando passou a integrar como parte da cidade de Porto Alegre, como Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia. Sua fundação tem início em 1760 com a construção da primeira capela sendo esta curada em 1761, mas ainda anexada a Freguesia da Viamão. Seu desmembramento ocorre em 1795, sendo elevada a categoria de Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia pertencente à cidade de Porto Alegre em 1806.[1] Até que em 11 de junho de 1880 se desmembra de Porto Alegre sendo elevada a categoria de Vila de Nossa Senhora dos Anjos de Gravataí.

No século XIX chegam à região os colonos açorianos, trazendo consigo suas peculiaridades culturais no trato com a agricultura e com a criação de animais caracterizada pela atuação na pequena e média propriedade se destacando sobre tudo o cultivo de mandioca para a fabricação de farinha e seus derivados. Por outro lado na região também se constata para esse período a presença de famílias portuguesas voltadas da mesma forma para a agricultura. Esses agricultores produziam insumos para o consumo e mercado interno. O cultivo principal destes produtores era a mandioca.

Neste período surgem as atafonas, onde vai se dar o beneficiamento da mandioca transformada em amido e farinha. Estas atafonas na sua maioria faziam parte das mesmas propriedades que plantavam a mandioca. Também nestas propriedades era comum a criação de animais para o consumo humano e para o trabalho, como bois vacas de leite e corte como porcos e galinhas. Enfim a pequena e média propriedade se destacava como um instrumento complexo de trabalho humano e consequentemente é o local onde as ações dos sujeitos acontecem no cotidiano.

A vida citadina da Gravataí dos tempos de aldeia resume-se em uma aldeia que era voltada para os interesses do campo, era a porta de entrada e saída de produtos necessários a vida dos habitantes seja eles do campo ou da cidade, percebe-se ai um campo interessante de movimentação da vida social nas relações entre os diferentes personagens pertinentes a nossa análise.

Contudo a região de Gravataí está inserida dentro de um processo político, econômico e social mais amplo que reflete e se percebe dentro das perspectivas sociais da época. Ou seja, toda dinâmica social deste período analisado, envolve o papel da mão-de-obra, que mesmo em uma zona de colonos vai estar fundamentada sobre a mão-de-obra escrava, instituição legitimada pela política vigente e aceita pela sociedade dominante da época. A mão-de-obra escrava nas regiões de pequena e média propriedade, fora das zonas de grandes latifúndios acabou criando seus traços comuns nas relações cotidianas destes sujeitos históricos dentro da vila de Gravataí, até o fim da escravidão antecipada segundo as fontes em 1886. Essas peculiaridades, que mesmo depois da escravidão constituiu fator importante para a compreensão sobre a conservação de vínculos que se estenderam para a introdução de mão-de-obra assalariada.

2     Que nos contam as cartas de liberdade

Na maioria das vezes quando buscamos fontes que possam nos revelar indícios do passado de sujeitos ditos “a margem da história”, se torna complicado encontrar em documentos “oficiais”, que não sejam inquéritos policiais, documentos que nos falem algo sobre determinados personagens. Quando muito, registros de batismos e casamentos. Porém na atualidade a amplitude do conceito de documento histórico alargou as fronteiras do que hoje é possível considerarmos como documento. Pode-se considerar como fonte histórica tudo que traz registros de uma época como os diários e cartas de uma pessoa, uma bula de remédio, um jornal local, um folheto de propaganda, um folhetim de novena, uma agenda pessoal, além da documentação acumulada em arquivos públicos como certidões e inventários, entre tantos outros tipos. Em fim se referindo à documentação escrita tudo conta um pouco da trajetória e contexto histórico de quem o produziu.

Se a Historiografia do século XX ampliou seu conceito de fonte histórica para um mundo não textual de possibilidades, também ampliou extraordinariamente os tipos de documentação escrita com os quais ira lidar. Não mais apenas as fontes institucionais e diplomáticas e as crônicas [...] hoje qualquer texto pode ser constituído pelo historiador como fonte [...].[2]

A documentação de nossa pesquisa, que se assenta principalmente nas Cartas de Liberdade da Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, são documentos de caráter oficial, já que eram redigidos ou copiados dos originais, e reconhecidos pela autoridade competente dentro das leis vigentes da época do Império Brasileiro, dentro do recorte contextual que nos interessa.

São notórios justamente pelo fato de nos trazerem informações sobre um grupo menos ou nada favorecido socialmente, o dos escravos. Assim como pela possibilidade de compreendermos parte do sistema de leis, quem eram as pessoas que trabalhavam nestas repartições e saber da sua influência junto ao contexto social em que se encontravam senhores e escravos. Podem-se analisar também recortes da vida desses senhores e suas relações familiares percebendo o cotidiano dos senhores e seus escravos, ou pelo menos destes que ganhavam o direito a liberdade e se declararem livres mesmo que juridicamente. Como observou Moreira, 2007.

A carta de alforria era a prova da liberdade de um escravo, introduzindo-o na vida precária de uma pessoa liberta numa sociedade escravista [...]. A carta transferia o título de propriedade [...] de senhor para escravo. Uma vez que havia a transferência de propriedade, o ato tinha de ser documentado publicamente por um tabelião.[3]

As cartas trazem elementos onde é possível perceber os “comos” e “porquês” de determinadas circunstância em que os escravos conseguiam barganhar com seus senhores dentro de uma relação de microrresistência, como relações a primeira vista pacíficas, mas que na verdade, revelam-se intricados jogos de interesses recíprocos, que acabavam por gerar as microliberdades no cotidiano do cativeiro. Lembrando que os conceitos de microrresistencia e microliberdade, assim como o conceito de cotidiano, nos reportamos a Michel de Certau, que segundo o autor enxerga o cotidiano como o lugar das invenções das resistências miúdas que invés da violência, elabora suas idéias e até as põe em prática na barganha dos indivíduos que se relacionam em sociedade, neste caso tanto senhores como escravos barganhavam buscavam conviver e sobreviver na sociedade.

Para ele as pessoas comuns, em seu anonimato, em sua invisibilidade possuem imensa criatividade para elaborar práticas cotidianas que as fazem interpretar o mundo a seu modo e forjar microrresistências e microliberdades que se opõe as estruturas de dominação dos poderes e das instituições. Para Certau, o cotidiano só pode ser pensado como um lugar prenhe de interpretações de desvios que transformam os sentidos reais em sentidos figurados.[4]

E talvez essa seja a base dimensional na trajetória, aberta e trilhada por escravos e senhores nas relações cotidianas que pelo esforço de pesquisa percebesse através das Cartas de Liberdade. Mas que, no entanto não se resumiam ao fim desse processo de relações entre as parte.

Por outro lado as cartas provavam a existência de uma rede de poderes, que quase sempre convergiam a favor do senhor que visa neste documento à oportunidade de criar laços de obrigações de ex-cativo com seu ex-senhor, que na falta de arbitrariedade do Império Brasileiro, visto que esta sociedade era uma sociedade patriarcal que ao menos teoricamente dava plenos poderes aos seus senhores em relação aos seus subordinados, (não que não houvesse resistência destes, inclusive por parte dos escravos como mostra as fontes a nossa disposição, como os inquéritos policiais) a Carta de Liberdade poderia ao invés de libertar o escravo, criar laços de dependência. Além do mais é preciso levar em conta a falta de opções do recém liberto, e as condições impostas para sua liberdade, já que esta poderia ser revogada. Numa sociedade escravista e racista poderia ser um bom negócio viver como liberto, mas ainda sobre as ordens do senhor, porém com status social de liberto, que poderia significar muito para um cativo nesta época em que ser negro e escravo era ser considerado um indivíduo de segunda ordem “os senhores [...] procuravam assegurar com seus escravos uma gratidão submissa”.[5]

No entanto a situação do liberto no século XIX, - como afirmou Costa[6] - era algo que dava ao ex-cativo um status dentro da sociedade e até mesmo criava divisões entre os negros da senzala e os negros da casa grande. Claro que a autora esta se referindo em seu trabalho aos escravos situados nas zonas das grandes plantações. Porém a autora afirma que o sistema escravista esta muito relacionado em suas especificidades aos aspectos regionais em que o escravo se encontra. É o que podemos constatar em relação à escravidão nesta Freguesia de Porto Alegre que hoje pertence a região do município de Gravataí. E que tinha para além das relações tradicionalmente conhecidas entre senhores e escravos, elementos próprios que dizem respeito ao modo de convivência e apresentação social destes agentes perante a sociedade em questão.

Nossas análises das cartas de Liberdade estão, delimitadas num período de 1846-1856, por ser um momento entorno do processo oficial do fim do tráfico de escravos no Brasil. Mas também achamos interessantes as declarações de Doação de Escravos, e as formalidades de algumas ditas Escrituras de Liberdade, estas, pela composição do texto que a primeira vista se mostra mais elaborada que as Cartas de Liberdade. Dentro desse espaço de tempo analisamos trinta e uma Cartas de Liberdade, (ao menos as mais interessantes a nossa proposta) claro que não utilizamos todas aqui devido ao fato desses documentos serem merecedores de uma analise mais detalhada, que extrapolaria o espaço delimitado para o artigo. Por outro lado esse material nos possibilita aprofundarmos o trabalho em futuras pesquisas.

No primeiro momento percebesse que a análise do discurso das cartas traz uma representação pública na construção da imagem da sociedade escravista. O senhor pretendia construir sua imagem de senhor “benevolente”, mas por outro lado acabava construindo ao mesmo tempo a imagem de um “bom cativo”. Até ai tudo bem, pois estas representações poderiam não ser meras construções, se levarmos em consideração, as já mencionadas microrresistências cotidianas que muitas vezes acabavam passando essa imagem de “bom cativo” ao senhor. Como encontramos nas Cartas de Liberdade da Senhora Luiza Josefa, registrada em 1845, no Tabelionato da referente Freguesia. Senhora do seu modesto plantel de escravos: a Crioula Joaquina, o Crioulo Salvador, o Crioulo José, o escravo Francisco de Nação, assim como a Crioula Felicidade e o Crioulo Manuel. Todos libertos segundo a narrativa da Senhora, pelo amor que sentia por seus escravos, Mas, no entanto, estariam livres, quando ela falecida fosse, ou seja, a liberdade como condição. “Nas regiões em que o trabalho escravo deixara de representar a forma predominante de produção, generalizou-se a prática de alforriar os escravos mediante a obrigação de prestarem serviços por um certo número de anos”.[7]

Ambas as cartas utilizadas em nossa pesquisa, e que estão citadas acima declaravam a posse e os direitos que poderiam ser revogados.

[...] qual pelo amor que lhe tenho dos bons serviços que me tem feito lhe dou a sua liberdade com a condição de servir me como minha escrava que é até meu falecimento, servir me com o mesmo amor que me tem servido até agora, logo que eu falecer poderá livremente gozar de sua liberdade [...]. Não podendo em tempo algum ser chamada a cativeiro.[8]

A senhora liberta seus escravos, um plantel modesto, mais significativo para os padrões de uma pequena ou média propriedade, não sabemos ao certo. Mas ao que tudo indica era uma estratégia para garantir o trabalho de seus escravos, numa situação peculiar, onde esta Senhora pelo que apresenta era sozinha e não mencionou em tempo algum seus herdeiros como era de praxe ma maioria das Cartas de Liberdade, garantido que estes não reclamem os escravos libertos. Essa suposta liberdade, ou liberdade jurídica mesmo que condicionada, garante na grande maioria das vezes o apaziguamento dos cativos já que desfrutam de um status de liberto. Desta forma senhora garante sua mão-de-obra pelo menos em quanto viva fosse.

Em 1846, a escrava de nome Maria de nação, propriedade do senhor José Antonio Dutra, ganha sua Carta de Liberdade sem condição alguma, como o senhor declarava no documento, “sem constrangimento de pessoa alguma”[9]. Mas o que esta por traz deste gesto de “bondade”. Representa-nos ser nada mais nada menos do que a elevada idade da escrava que segundo consta tinha mais ou menos setenta anos. Assim seu senhor na dúvida possivelmente por sua debilidade física, lhe torna livre. E consequentemente se livra do ônus da manutenção de uma escrava moribunda.

No período em que antecede a proibição do tráfico internacional de escravos, libertar um escravo novo e saudável teria que haver uma pré-condição que atendesse aos interesses do senhor, ou o pagamento pelo escravo de seu valor, desde que houvesse a aceitação por parte de seus senhores.

Ainda em 1846 o escravo José Pain de Nação, contava como propriedade no inventário de seus finados senhores Manuel de Souza Oliveira, e de sua esposa Maria de Araújo Menezes. O escravo entrou como parte que foi destinada para a filha do casal, Eufrásia Maria d’Oliveira. No entanto foi liberto mediante pagamento, num total de quatorze doblos, sendo que este pagou apenas dez doblos até o dia em que recebeu sua carta, ficando para pagar os outros quatros doblos em outra ocasião.

Esses fatos nos levam a crer que existiam relações de confiança que eram criadas onde se estabeleciam esses aspectos de microliberdades. Ou seja, o escravo tinha um ganho, era o conhecido escravo de ganho mesmo na aldeia que possivelmente tinha seus escravos de ganho, mas também como no segundo e terceiro distritos, que ainda hoje são zonas rurais. O escravo poderia encontrar colocação como jornaleiro, praticamente o ano todo devido à estrutura agropecuária da região, embora dependente dos ciclos da natureza.

Aquele que soubesse exercer algum oficio, era livre para viver onde bem entendesse, com tanto que ao fim do dia ou da semana, entregasse ao amo uma féria prefixada; o que excedesse a féria, lhe ficaria pertencendo e constituiria um pecúlio para a compra da alforria. [...] passou a ter direito a alforria, quando depositasse o preço; permitiu-se que contratasse seus serviços com terceiro mediante aprovação do senhor.[10]

 Nesta região predominava como já foi dito anteriormente a presença das atafonas para a produção de farinha de mandioca e seus derivados. Assim na época da plantação, até a capina, o contingente de mão-de-obra escrava era aumentado nas pequenas propriedades que não tinham como manter continuamente certo número de cativos. No período entre safra o escravo poderia se empregar como pedreiro e carpinteiro na manutenção das atafonas, ou no trato com os animais, visto a controlada facilidade de deslocamento destes. Na época da safra o escravo, junto ao pequeno ou médio proprietário, ou aos seus subordinados, era quem colhia a mandioca, carreteava até os galpões da atafona e era quem trabalhava no engenho e era mesmo quem guardava a muda para o novo plantio. Práticas da lavoura que ainda hoje se observa nessas localidades, feita por mão de trabalho logicamente livre, mas ainda jornaleiros.

A capacidade de mover-se para prover a subsistência traduzia-se na expressão ‘viver sobre si’, algo que a principio estava vedado ao escravo. [...]. Mais factível nas vilas e cidades, mesmo em grandes fazendas os cativos conheciam de perto essa possibilidade e procuravam exercita-lá [...] em muitos casos de alforria. Mas esta capacidade de mover-se referia-se a um sentido específico de liberdade. Significava, fundamentalmente, liberdade para escolher e estabelecer novos laços de amizade, família ou patronagem, [...].[11]

A compra da liberdade também ocorreu com a escrava Felícia, Crioula,[12] que como tinha liberdade para circular executava trabalhos de onde tirou renda para comprar sua liberdade, que lhe custou oito doblos, em 27 de novembro de 1847. O mais raro nas cartas deste período é encontrar alguma sem condições impostas aos escravos. Podemos estimar que seja pelo fato da circulação de rumores e noticias sobre as leis e a debilidade do sistema escravista. “São várias as razões pelas quais os grupos dominantes se apegavam ao trabalho escravo. Destaquemos dentre eles o fato de que não havia ainda uma alternativa viável ao trabalho cativo”.[13]

Comprar da Carta de Liberdade era freguente nesse período na Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos, atestando a existência como já foi constatado do escravo de ganho. Sabemos, no entanto que este escravo de ganho, trabalhava para seu senhor e entregava parte do que ganhava ao senhor, mas para nós a questão que levantamos é que estas relações não são uniformes e talvez seja aí que entra a engenhosidade do escravo em comprar sua liberdade. O que é certo é que havia um contrato com seu senhor, e que o escravo retornava a casa do seu senhor depois do trabalho, certamente isto ocorria por interesses variados do cotidiano destes indivíduos entre propostas e promessas.

[...] os negros de ganho ou os alugados ombreavam com os artesões livres. Havia-os de todo oficio: sapateiro, carpinteiro, funileiro, carregadores, vendedores ambulantes. Alguns senhores viviam do aluguel de seus escravos. Outros mantinham no ganho grande números de cativos. Os negros saiam pela manhã para seus afazeres, voltavam a noitinha para entregar ao senhor o que tinham ganho.[14]

Queremos deixar claro para o leitor que entendemos essas reações como relações dinâmicas que abriam várias brechas no sistema escravista. A onde o escravo já havia barganhado suas microliberdades levando consequentemente a sua liberdade de fato em muitos casos. Reforcemos que o escravo ganhava uma licença para se afastar da casa do senhor e poder trabalhar em outros locais, mas o que nos escapa muitas vezes são os fatores que amarravam essas relações, possivelmente um filho ou uma companheira ou esposa deixada para traz. É o que veremos mais adiante, por hora ficamos com os escravos de ganho.

O caso da Carta narrado anteriormente não foi fato isolado. Durante o espaço de tempo de nossa pesquisa essa prática aparece regularmente. Além do escravo já mencionado José Pain, que comprou sua liberdade em 1846, encontramos para o ano seguinte a escrava de nome Felícia, (mencionada anteriormente) que foi parte da herança de dona Francisca Ignácia de Jesus que recebeu da mão da escrava a quantia de oito doblos segundo consta em moeda corrente.[15] No entanto nota-se a preocupação do senhor pelo documento que estava passando, no empenho do compromisso do senhor e na representação de sua imagem. E para que seus herdeiros, e nem seus testamenteiros revogassem a Carta e não manchassem possivelmente sua imagem perante a sociedade conservadora, a Carta de Liberdade era bem alinhavada. Para que desta forma preservasse os laços de compromisso do escravo com seu ex-senhor.

Nem meus herdeiros e testamenteiros se embaraçarão com a presente Carta de Liberdade e por ser esta de muito minha livre vontade sem constrangimento de pessoa alguma, se por acaso nesse papel faltar alguma clausula ou clausulas aqui as ei por especificadas em geral e quando aparecer algum papel tendente a este, obrigado ficará de nem um efeito, ficando este prevalecendo, [...].[16]

A razão dessa preocupação do senhor assenta-se na lógica de que o escravo sendo um bem de raiz, e pela existência dessas clausulas na Carta, nos leva a crer que havia intrigas e discussões familiares entre senhores e seus dependentes, estes como futuros herdeiros assistiram no ato da expedição da Carta de Liberdade, a dilapidação de seu patrimônio de direito. Podemos levar em consideração os rumores que haviam na época sobre o declínio do regime escravo, e tendo em mente as particularidades produtivas  regionais, e que para os sujeitos históricos referentes a pesquisa ainda se passariam entorno de quatro décadas para o fim legal da escravidão.

Nossa idéia encontra respaldo na Carta de Liberdade concedida por dona Zeferina Antonia de Jesus. Pelo fato desta ter ficado viúva do senhor José Ângelo da Fonseca. E para a sorte de seu escravo pardo, (cujo nome está ilegível no documento) e pela vontade da senhora ela o liberta rezando na Carta, que pagaria de sua terça do inventário de seu marido o valor do escravo para que seus herdeiros não ficassem no prejuízo, e para que estes não o reclamassem. “em atendimento ao bem que me tem servido e mesmo amor de criação, por esta lhe confio sua liberdade [...]”.[17] Nota-se pelo discurso da senhora o esforço para libertar o dito escravo pardo, ao qual consta na Carta a quitação da parte de seu marido em testamento, esboçando a sua vontade. E bem sabemos que escravos pardos na grande maioria das vezes é fruto de relações entre senhores e escravas, como não temos com atestar tal fato neste episódio, cabe a nós levantarmos a questão que só veio a luz e chegou a público graças ao texto da Carta de Liberdade.

Num outro caso peculiar, encontramos o preto forro João de Nação, como era conhecido, que em 1849, já se encontrando livre, mas não juridicamente e tendo idade de sessenta e seis anos, pagou a quantia em dinheiro que devia ao finado Bonfin Bastos, à sua esposa dona Ana Raimunda Chavier, que então registra no tabelionato da Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos sua Carta de Liberdade.[18]

Em 18 de junho de 1849, o escravo de Nação Benguella Clemente,[19] compra sua liberdade pela significante quantia de quatrocentos mil reis pagos a viúva dona Maria Joaquina Garces que na mesma Carta especifica que ficara com o dinheiro pago pelo escravo e que este valor será descontado da sua terça do inventário para que seus herdeiros não sejam prejudicados. E não seria diferente, afinal a quantia mencionada é quase a metade de um conto de reis e para a época, dada as circunstâncias econômicas locais era uma quantia bem considerável. Agora nos cabe uma reflexão, como um escravo arrecada está quantia, é a pergunta que nos fizemos. Supomos que o escravo que tenha conquistado a confiança de seus senhores conseguia trabalho como jornaleiro exercendo variadas funções, mesmo que dessa parte do ganho ao senhor consegue acumular dinheiro para comprar sua liberdade. O escravo também não tinha o dever de sua manutenção, está ficava a cargo dos seus senhores ou onde este se estabelecesse para cumprir uma jornada de trabalho. Por outro lado há a possibilidade, (que nas nossas pesquisas ainda não ficou claro)  que seria de parte deste dinheiro chegar as mãos do escravo através do senhor que contratou seu trabalho junto ao seu senhor. Para este escravo este trabalho poderia representar uma microliberdade onde sua remuneração poderia conquistar sua alforria. Assim o escravo tinha mais disposição para realizar suas tarefas, dessa forma despertava o interesse do contratante que já arrendando esse serviço via as vantagens do trabalho livre. E uma vez conquistada à gratidão do liberto este se via na obrigação servir este proprietário sobre novas relações de trabalho menos penosas devido à capacidade de mobilidade do indivíduo alforriado. As práticas e concessões começaram a fazer parte do cotidiano de senhores e escravos, no interesse do senhor preservar a mão-de-obra depois da abolição era uma estratégia nada segura, mas era o que se tinha a fazer naquele momento.[20]

 Na região da Aldeia dos Anjos, predominava uma agricultura colonial de consumo interno, não se tinha a perspectiva de investimentos capitalistas como as zonas cafeeiras. O trabalho é mais rudimentar e por isso talvez se tivesse o interesse por manter o statusquo, ou senão pelo menos manter o escravo nas propriedades ou em sua periferia após a abolição. Podiam-se haver muitas maneiras de se manter um escravo compromissado com seu senhor sem que para isso se utilizasse a força em épocas de leis contra o tráfico e diante da denúncia pública dos grupos abolicionista contra um Império retrógrado que ainda tratava seres humanos como rezes para usufrutos e conveniências de seus súditos.

Entre as maneiras de se criar laços de afinidades dos escravos com seus senhores podemos destacar além da licença para trabalhar fora da propriedade seja o escravo alugado ou de ganho, temos outras situações que merecem destaque: o casamento, o batismo e o apadrinhamento. Consequentemente tinha-se a constituição da família escrava. Essa família escrava possuía uma formação muito peculiar, relacionada ao contexto em que o escravo está inserido, e vai ainda depender muitas vezes da habilidade do escravo no cotidiano, construindo relações de confiança com seus senhores em interesse próprio.

3     Casamento, batismo e apadrinhamento: a constituição da família escrava na aldeia.

O escravo nunca foi um sujeito estático dentro do sistema escravista, muitos resistiram abertamente se revoltando contra as condições impostas pela escravidão. Outros, no entanto encontraram caminhos e estratégias para resistir sem violência na medida em que conquistavam espaço legal dentro da sociedade, para aos poucos livrarem-se das amarras do trabalho servil. Senão de todo, ao menos buscavam elementos fundamentais para criar uma rede de relações onde o senhor poderia ter que fazer concessões ou até mesmo relevar certas atitudes ou não de seus cativos. Mas o certo nos parece, é que o casamento, e o batismo conquistaram para o escravo uma posição e uma idéia de cidadania, sendo estes sacramentos, ritos religiosos de um Estado Clerical. Juridicamente o apadrinhamento acabava por reconhecer o escravo como pessoa, assim “descoisificando” o cativo e pondo em contradição a sociedade escravista. “A sobrevivência da relação entre os escravos muitas vezes, perpassava por uma boa ligação com os senhores de escravos”.[21]

Além da sua função de libertar, valendo como documento, a Carta de Liberdade nos revela indícios de outros meios pelos quais estes escravos se inseriam na sociedade ampliando seus campos de atuação. São as próprias Cartas que nos seus textos nos trazem situações de forros comprando esposas, ou mulher escrava comprando seus filhos, companheiros comprando enteado, assim como os padrinhos libertando pela compra seus afilhados. Estas ações por parte dos escravos tinham por interesse maior, a construção de uma identidade fundamentando-se no papel da família, mesmo que esta não fosse uma família aos moldes da sociedade conservadora, simplesmente pelo fato destes escravos estarem presos a rotina do trabalho sob o jugo do senhor. Marisa Laureano (2005) posiciona-se mostrando as vantagens de se conseguir um alento na família nas horas difíceis do cativeiro amenizando as penas da condição do ser escravo.

Quando discorremos sobre o fazer de uma família, pensamos o que representava o fato de ter mulher, marido, ter filhos e, quem sabe, avós. Pensamos até mesmo nas amizades mais próximas que garantiam aos escravos não se sentirem solitários [...] quando a situação da escravidão impusesse mais do que o homem pode suportar. [22]

O que apuramos até agora em nossa pesquisa, das Cartas em que constam casamentos e batismos, ou as situações de apadrinhamento no sentido do padrinho intervir a favor do afilhado cativo, mostra-nos um discurso sem mais enredos. Ou seja, podemos verificar através destes textos que estes eventos entre os anos de 1846 a 1856, eram encarados pela sociedade como habituais. Ao menos é o que se deixa transparecer. As Cartas deste período pesquisado são enfáticas ao reconhecer pelo discurso como casamento, perante o tabelião que as copiava, a união dos escravos nos documentos que analisamos. Já que a Carta de Liberdade é um documento oficial e mesmo que estes não fossem unidos na Igreja a presente declaração tornava a união legal perante a justiça do Império do Brasil. Por outro lado Robert Slenes (1999), em sua obra nos fala dos casamentos realizados pela Igreja no Sudeste Brasileiro no século XIX. Segundo o autor era comum para o período esse tipo de união entre cativos com o consentimento do senhor, e devido a uma igreja bem presente em São Paulo, interferindo ativamente na vida dos fiéis de suas paróquias.[23] Isto nos leva a crer que dentro das circunstâncias em que se encontra nosso objeto de pesquisa podemos fazer esta relação na Aldeia dos Anjos para o mesmo período por ser esta localidade muito apegada a sua Igreja e esta muito ativa dentro daquela Freguesia.

Casados vivendo sobre o mesmo teto encontramos o escravo Joaquim e a escrava Maria de Nação Benguella[24] na época aquele com trinta anos e esta com vinte oito. Escravos de dona Maria Joaquina da conceição que como consta permitiu a união dos cativos e fez questão de libertá-los juntos. Apesar dessa liberdade ser condicionada e apenas se consumar com a morte da senhora, esta cuidou para que seus herdeiros não revogassem a Carta, comprando o direito sobre os dois em troca de parte de sua terça no inventario do seu falecido marido.

Desta forma Joaquim e Maria, além da Carta de Liberdade mais do que isso tinham sua união reconhecida em um documento oficial redigido em 10 de agosto de 1848, escrito pela própria senhora e perante as testemunhas rogando “as Justiças de Sua Majestade Imperial dessem a esta disposição toda a validade”.[25] Assim em 7 de março de 1849, Francisco Gomes Ferreira Soares, Escrivão de Paz, registrou em seu Tabelionato oficializando a Liberdade pela Carta mas também uma união estável entra dois escravos que ganhavam a liberdade juntos.

Joaquim e Maria se uniram no cativeiro com o consentimento de seus senhores. Segundo Laureano,[26] estas condições poderiam provir do próprio sistema escravista que permitindo a união de escravos e a formação da família criavam uma organização estável e tranqüila como almejavam os senhores de escravos. Por outro lado o escravo ia abrindo brechas no sistema escravista, muito irreversíveis como foi o caso da Carta mencionada anteriormente.

Mas pensar família somente a partir do casamento é apenas o inicio. Precisamos ter em mente que o caminho aberto pela união de duas pessoas mesmo sob o jugo dos senhores tendia a se alargar. Estamos falando dos frutos dessa união, ou mesmo como era de costume dos filhos fora dessa união. Principalmente nos chama atenção o filho de escravas, que é os que mais temos noticia nas Cartas devido ao fato destes permanecerem muitas vezes por um tempo junto delas, e em muitos casos não se mencionar o paradeiro e nem que era o pai destes. Afinal de contas os escravos eram tratados como propriedades do senhor. Este por sua vez, por sua vontade, muitas escravas tiveram filhos de escravos escolhidos pelo senhor, pois eram vistos como plantel, como rezes.[27] Isso quando suas escravas não eram vitimas de estupros de feitores, sinhozinhos, e com mais freqüência do próprio senhor. Daí provem grande parte dos pardos ou dos mulatos citados nas Cartas de Liberdade.

Muitos destes libertos foram libertados por suas sinhas, como a escrava parda Fermina,[28] esta em 1852 tem sua liberdade comprada pelo seu padrinho o senhor José Custodio de Oliveira, que mesmo comprando a dita escrava, a deixa morando com sua mãe aos cuidados da antiga dona a senhora Bernardina Joaquina da Conceição, que na Carta faz questão de enfatizar que a “escravinha era filha de sua escrava também parda de nome Maria.”[29] Sendo que a escrava Fermina conforme consta na Carta de Liberdade, nuca iria para casa de seu padrinho e proprietário. “tenho dado a liberdade a referida escrava Fermina sem mais ônus de cativeiro, ficando a dita escrava em meu poder para criá-la até que siga seu destino.”[30] 

Temos que concordar que estamos diante de uma situação um tanto inusitada. Mesmo o senhor Custódio sendo Padrinho da escrava Fermina, (claro que sabemos que os senhores batizavam os escravos) apadrinhavam estas crianças fechando assim o cerco sobre suas propriedades e a de seus parentes. Mas o que nos interessa esta nas entrelinhas do documento. Um padrinho que sem justificativa compra sua afilhada parda e mesmo assim a deixa aos cuidados de sua antiga senhora sem mais reivindicá-la. De outro lado uma senhora que como já dissemos enfatiza além do normal a condição de escrava parda de dois anos ser filha de sua escrava também parda.

Esse caso não foi isolado nos domínios desta senhora. Em 1853, dona Bernardina fez a doação legal de outra criança parda a sua irmã, também justificando a condição da criança como parda devido ao fato de ser sua mãe também parda. “Eva filha da falecida minha escrava também parda, de nome Felisberta, cuja escrava Eva, terá de presente dez anos de idade”.[31] Mas uma vez aqui a senhora demonstra preocupação em reafirmar a condição de pele parda de uma escrava sua devido a influencia da cor da pele da mãe. Em suma temos aqui  duas situações em que quatro cativas pardas, num cenário que se evidencia as condições de uniões entre brancos e escravas. Mas também a condição a onde se forma a família já que muitas escravas desta criam seus filhos junto de si ou perto na casa de algum irmão ou parente do senhor. Considerando que estamos tentando criar modelos de família fora do convencional para o século XIX, podemos considerar que uma mãe e um filho mesmo na condição de escravos compõem uma família.

O Papel de Doação de dona Bernardina traz outro detalhe interessante que nos fala sobre a ascensão do escravo pelo batismo. Dona Bernardina doa a escrava e o primeiro documento que atesta esta doação é o batistério, onde aparece o nome do senhor. Além do mais vem à luz duas contradições até agora na situação da formação da família escrava. Em primeiro lugar o casamento, este não sabemos se era realizado formalmente na Igreja, nesta localidade, (por não aprofundarmos mais nossas pesquisas nesse ponto trabalho ainda a ser feito em outra ocasião) mas juridicamente aparecem escravos nos discursos documentais, como legalmente casados e não amasiados como em outros documentos de costume. Em segundo lugar o batismo que este sim com certeza, integra o escravo e qualquer indivíduo na condição de cristão católico no nosso caso, dentro de um Estado eclesiástico devido às estreitas ligações entre Igreja e Império. Tem sentido a visão de Pinsk (2004),[32] que entende os sacramentos como um ato desagradável e não como ato de fé para os padres paulistas das zonas cafeeiras. Entretanto na mesma obra o autor afirma que os negros iam se adaptando aos rituais eclesiásticos. Tanto é verdade que o nosso sincretismo religioso na atualidade comprova isto. No entanto temos em mente, que o importante é a utilização por parte do escravo dos atributos destes sacramentos como ato de microrresistência, para cultuar seus ritos em meio à liturgia católica. Nesta situação precisamos levar em conta as regional idades, e as intenções de cada pároco  dentro  de sua comunidade.

Sendo o casamento e o batismo dois dos principais sacramentos católicos, a sociedade cai em contradição, já que considera juridicamente o escravo como propriedade, como rez. A sociedade brasileira de meados do século XIX, por esses indícios deixa transparecer os interesses de classe por de traz da justificativa de se manter o negro na condição de escravo por serem considerados inferiores, ao mesmo tempo em que os sacramentos da Igreja como o batismo são concedidos a brancos e negros ao que parece sem distinção já que os sacramentos são um ato litúrgico, e sendo a Igreja protetora das verdades espirituais.

Situação semelhante aconteceu em 1853 com a escrava Maria[33] com três meses de idade filha de outra escrava de nome Maria do Segundo Distrito da Freguesia, cuja sinhá dona Hilena Dutra, vende a menor a seu padrinho também senhor de escravos, o senhor Serafim Ferreira, pelo valor de cem mil reis. Considerado bastante dinheiro por uma criança de três meses de idade. O que demonstra o “interesse” do padrinho em libertar a afilhada, porém nos fica obscuro os verdadeiros interesses nesta atitude do senhor devido a uma fonte que viesse esclarecer tal fato.

Os documentos apresentados até agora neste capítulo, nos dão a idéia da formação da família escrava, ou de outro modo falando, dos modelos de família escrava que se formavam por necessidade e pelas condições da vida em cativeiro que eram submetidos os escravos. Embora em determinados casos esta noção de família extrapolava os modelos convencionais e aceitáveis da sociedade conservadora do século XIX. Levando-se em consideração o apadrinhamento do escravo pelo batismo como ao menos uma possibilidade de elo se não de ligação, mas de afinidade, já que muitos padrinhos demonstravam na medida do possível disposição em libertar com o passar do tempo seus afilhados, ao menos para se justificarem perante a sociedade na construção de sua imagem de senhor benevolente.

Seja como for as discussões sobre a formação da família escrava no Brasil pode ainda render boas discussões devido ao fato deste assunto estar muito ligado as condições sociais especificas de cada região do país. Mas ao que tudo indica sobre nossas pesquisas na região da então Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, as práticas de união entra escravos, e mesmo entre estes e libertos, assim como o batismo serviram como elementos desagregadores do sistema escravista na região. E da mesma forma elementos que contribuem para a fixação destes escravos mesmo depois da liberdade nos limites das propriedades dos antigos senhores. Esse fator se torna importante para compreendermos o pós- abolição, no sentido de entendermos as novas relações de trabalho que começaram a se estabelecer entre os antigos escravos e os antigos senhores da região, assunto que abrirá certamente outro campo de pesquisa. 

Conclusão

São muitos os caminhos que a documentação até agora analisada nos abriram, mostrando-nos um feixe de probabilidade no que se refere à documentação sobre a escravidão em Gravataí, sobre tudo as Cartas de Liberdade. Mas dentro deste ensaio coube-nos deter-se nas relações cotidianas dos escravos com seus senhores e nas possibilidades destes conquistarem sua liberdade através das microrresistências impostas por ambos os sujeitos históricos nas suas relações diárias. Constatamos que ambos agentes souberam criar mecanismos de micropoderes para barganhar por seus interesses, fossem eles de grupo ou individuais. Acreditamos que esse fosse um dos caminhos trilhados por escravos para aos poucos irem ganhando sua liberdade de maneira que pudessem ser introduzidos nesta sociedade juridicamente como pessoas livres.

Claro que não ignoramos os atos de resistência de fato impostas pelos cativos que aparecem em muitas bibliografias existentes sobre esse assunto. Por outro lado nosso interesse se debruçou nestes escravos que estavam mais próximos do senhor, pois através destes descobrimos as artimanhas e os jogos de sobrevivência que mais colocam em cheque um embate de nervos e fôlego sobre nossos sujeitos.

A importância da pesquisa nesta região também ancore-se no fato de ser uma zona neutro, no sentido de não ser região da grande lavoura, e nem região de grande fluxo de colonização européia dos finais do século XIX, deixando esse papel para os altos da serra gaúcha. Podemos entender dessa forma as relações de dependência entre senhores e escravos que vão de encontro aos interesses de ambos em se manter muitas vezes, mesmo depois da liberdade, em relações de trabalho, muito disso transpareceu nas cartas e nas exigências impostas e nas conquistas de ambos os lados no cotidiano da instituição escrava  da Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia em meados do século XIX.

Foi possível trazer a tona os vestígios que passam a ser objetos do historiador com os quais este constrói seu trabalho. E assim consegue lançar um olhar ao passado e fazer suas projeções.

Através Das Cartas de Liberdade elaborou-se um trabalho de pesquisa de resgate histórico num recorte até então não trabalhado sobre a região onde hoje é o município de Gravataí, já que esta encontrava-se anexada a Cidade de Porto Alegre neste período que nos interessa. Regatando Assim dados da memória da escravidão da então Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia. Para de esta forma levar a público a nossa tentativa de reconstrução das memórias da escravidão na localidade a partir dos documentos.

Com isso creio que se abriu um caminho para trabalhos posteriores que venham a somar com este, que possam desta forma com o presente trabalho despertar o interesse de outros pesquisadores sobre a escravidão em nossa localidade.

Nossa idéia foi justamente poder fazer uma análise e pesquisa deste recorte histórico, e penso que foi possível chegar a esse objetivo que tem como propósito ver a escravidão a partir de micro locais para que possamos desta maneira desmembrarmos várias possibilidades de estudo. Já que nossa pesquisa, a onde não alcançou resultados novos, conseguiu trabalhar o tema escravidão, de entender aquela realidade não do centro para a periferia, mas do interior para a capital, revendo assuntos como a alforria dos cativos e sua trajetória e contribuição para a formação da família escrava na região e fazer uma comparação com outras localidades já estudadas, para detectarmos semelhanças e peculiaridades que são a marca registrada do Brasil devido a sua dimensão geográfica. E essa dimensão que faz do Brasil esse país multicultural, que com o processo de abolição veio a abrir caminhos para um sincretismo no bom sentido para a formação da sociedade brasileira na atualidade. Embora sabemos que há muito a ser feito em termos de justiça social, e trabalhos como este contribuem para manter viva a memória daqueles tempos de cativeiro.

Referências

APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 50,1846.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 55, 1846.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 60; 61, 1847.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 60; 61, 1847.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 60; 61, 1847.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 64, 1848.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 73; 74, 1849
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 74, 1849.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 65; 66, 1848.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 65; 66, 1849.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 111, 1852.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 111, 1852.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 111, 1852.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 111, 112, 1853.
APERGS, Notas, L.1 Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia, folha 113; 114, 1853.
BARROS, José D’Assunção. O Campo da História: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
BORGES, Vavy Pacheco. O que é História. São Paulo: Brasilense, 1993.
COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República. São Paulo: UNESP, 1999.
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2006.
FREITAS, Décio. O Escravismo Brasileiro. Porto Alegre: Vozes, 1980.
AMARO, Luiz. (org.) Afro-brasileiros: história e realidade. Porto Alegre: EST, 2005.
MAESTRI FILHO, Mario José. Depoimentos de escravos brasileiros. São Paulo: Ícone, 1988.
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do Silencio: os siginificados da liberdade no Sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Que com seu Trabalho nos Sustenta: as cartas de alforria. Porto Alegre: EST, 2007.
PINSK, Jaime. Escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
ROSA, Jorge. História de Gravataí. Porto Alegre: EDIGAL, 1987.
SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos Históricos. São Paulo: Contexto, 2010.





[1] ROSA, 1987, p.21.
[2] BARROS, 2004. p.134.
[3] KARASCH, 2000.p.439 apud. MOREIRA, 2007, p.13.
[4] SILVA, 2010, p.77.
[5] CUNHA, 1987 apud MOREIRA, 2007, p.13.
[6] COSTA, 1999, p.296.
[7] FREITAS, 1980, p. 122.
[8] APERGS, 1846, f.50.
[9]APERGS, 1846, f.55.
[10] FREITAS, 1980, p. 123.
[11] MATTOS, 1998, p.45.
[12] APERGS, 1847, f.60-1.
[13] FAUSTO, 2006, p.105.
[14] COSTA, 1999, p.281.
[15] APERGS, 1847, f.60-1.
[16] APERGS, 1847, f.60-1.
[17] APERGS, 1848, f.64.
[18] APERGS, 1849, f.73-4.
[19] APERGS, 1849, f.74.
[20] COSTA, 1999, p.339.
[21] LAUREANO in AMARO, 2005, p.119.
[22] LAUREANO in AMARO, 2005, p.119.
[23] SLENES, 1999, p. 89.
[24] APERGS, 1848, f.65-6.
[25] APERGS, 1848, f.65-6.
[26] LAUREANO in AMARO, 2005, p.121.
[27] MAESTRI FILHO, 1988, p.45.
[28] APERGS, 1852, f.111.
[29] APERGS, 1852, f.111.
[30] APERGS, 1852, f.111.
[31] APERGS, 1853, f.111-2.
[32] PINSK, 2004, p.62.
[33] APERGS, 1853, f.113-4.

Sugestão de Avaliação de História para o 6º ano

  NOME: _________________________________________________ TURMA:______ DATA: ____/_____/_____ PROFESOR: Luciano Braga Ramos AVALIAÇÃO DE HIS...